Postado em: 12/06/2016

Ahpaceg na Mídia - Martírio infantil na fila por um órgão

O POPULAR

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Martírio infantil na fila por um órgão

Em Goiás, crianças sofrem com a falta de hospital para fazer cirurgia e de suporte adequado

Infância em tratamento - Lara Castro passa duas horas por dia na máquina de hemodiálise em clínica em Goiânia. Tratamento é realizado quatro vezes por semana, enquanto ela não consegue nova chance de receber um transplante de rim

Crianças enfrentam um xadrez de vida e morte na fila de transplante em Goiás. Nenhuma unidade de saúde pública ou particular goiana realiza o procedimento pediátrico de transferência de órgão ou tecido. Para serem transplantadas fora do Estado, elas têm de passar por outro martírio. Ao receber a notícia surpresa de que há doador compatível, devem se encontrar em bom estado de saúde e conseguir voo disponível de última hora para chegar ao centro cirúrgico no horário determinado. O desespero acirra a corrida contra o relógio.

O Estado não tem nenhum tipo de controle da quantidade de crianças que precisam de transplante, apesar de o procedimento sempre exigir uma logística rápida para obter êxito. Levantamento do POPULAR revela que, em Goiás, ao menos 60 crianças já necessitam ou vão precisar de um rim antes de alcançar a fase adulta. Outras 19 entraram na fila por uma córnea, no Estado, entre janeiro e março deste ano, segundo a pesquisa mais recente do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT).

O governo de Goiás também não oferece transporte aeromédico para atender às famílias, caso elas não encontrem voo disponível por meio do serviço de Tratamento Fora do Domicílio (TFD), que custeia o traslado com verba do Sistema Único de Saúde (SUS).

O Estado não conseguiu tirar do papel uma licitação para contratação de empresa especializada no serviço de transporte aéreo de doentes e equipes médicas. A falta de estrutura castiga ainda mais as crianças, que contam somente com tratamentos médicos paliativos na capital, enquanto não são transplantadas.

“Quero um rim”, diz menina de 5 anos

Cleomar Almeida

 “Quero um rim para passar para o meu corpo”, afirma Lara Castro, de 5 anos, enquanto faz hemodiálise, tratamento por meio do qual uma máquina limpa e filtra o sangue. No último dia 4, data do seu aniversário, por coincidência, a menina quase recebeu o transplante de presente, depois de uma ligação à noite do Hospital do Rim, em São Paulo, dizendo que a criança deveria estar no centro cirúrgico até as 6 horas do dia seguinte. A família parou tudo. Deixou convidados da festinha. Não cantou parabéns. A falta de estrutura e de suporte fez todo o esforço ser em vão.

A mãe da criança, a dona de casa Jade Santos Teles, de 25, conta que por volta das 18h30 do dia do aniversário uma atendente do Hospital do Rim disse, por telefone, que o resultado do exame de compatibilidade ainda não havia sido liberado. Ficou de sobreaviso. Ligou, em seguida, para a equipe do Tratamento Fora do Domicílio (TFD), mas recebeu o alerta que haveria risco de não conseguir viajar por causa do horário já adiantado. Mais tarde, outra ligação confirma que a criança poderia ir. “Largamos tudo antes de cantar parabéns”, conta Jade.

No Aeroporto Santa Genoveva, já não havia mais voo disponível para São Paulo. Desesperada e sem mais nenhum tipo de suporte, Lara seguiu de carro com a mãe e o pai, o gerente Rogério de Castro Teles, de 33, para Brasília, de onde partiria para a capital paulista no voo das 3 horas da madrugada. Tudo para chegar ao Hospital do Rim antes das 6 horas. Não adiantou. Ao chegar à capital federal, outra ligação dizia que a família não precisava ir mais. O tempo estourou. Lara ficou no meio do caminho.

“Se fosse caso de vida ou morte, como a gente agiria nessa situação?”, pergunta o pai, ressaltando que, se houvesse mais suporte, Lara teria sido transplantada. “Goiás está muito subdesenvolvido na questão da saúde”, desabafa a mãe. Ainda sem um rim e mesmo após perder os parabéns, Lara carrega a incessante vontade de viver.

Médicos destacam falhas

Médicos reclamam da falta de suporte aos pacientes que necessitam de transplante em Goiás e dizem que o Estado precisa melhorar muito o atendimento à população. Os profissionais destacam, ainda, que a população precisa se mobilizar a favor da cultura de doação de órgãos.

O médico Johnathan Freitas, nefrologista pediátrico do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), aponta problemas de infraestrutura de captação de órgãos no Estado. “Vira e mexe tem relato de pessoa que queria doar mas não conseguiu. Esses dias soube de um caso no interior. Tentaram, por várias horas, conseguir equipe que captasse os órgãos porque não tinha profissional especializado para captar”, afirma.

Vice-presidente da Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg), o administrador hospitalar Gustavo Suzin Clemente critica a falta de planejamento do Estado. “Não existe planejamento. Não tem cadastro regional, de quem precisa e de qual órgão. Não tem monitoração em Goiás”, diz.

A Secretaria Estadual de Saúde (SES) informa que fez captação de 233 órgãos desde 2014 e que, entre 1995 e 2015, realizou 14 mil transplantes. Para o médico Robson Azevedo, além de o Estado resolver os problemas, a população precisa se sensibilizar. “É necessário estimular as pessoas a doarem órgãos”.

3 perguntas para Luciano Leão

Gerente da Central de Transplantes e Captação de Órgãos de Goiás, Luciano Leão diz que serviço aeromédico pode diminuir parte dos problemas de atendimento

1 - Goiás não deveria ter o controle de crianças que precisam de transplante? 

Deveria, por interesse social, por assim dizer. As ações que a central de transplantes tem de obrigatoriamente exercer é de controle dos procedimentos que correm sob a sua jurisdição. Não temos acesso à fila de crianças que são receptoras. Existem várias dificuldades.

2 - Por que o Estado não faz transplante pediátrico?

É um procedimento complexo e também, por parte da rede privada, exige interesse das equipes. Não tem lógica que todos os Estados realizem os transplantes. A gente precisa ter hospitais que são referência. A gente não pode sonhar. Fazer transplante uma vez por ano. É preciso que o paciente, independente do transplante que vá realizar, tenha o acesso garantido, mas não só em Goiás.

3 - Se sair do papel, a licitação do serviço aeromédico vai diminuir os problemas?

Já estamos discutindo isso. Vamos fortalecer a descentralização. Em Goiás hoje é restrito a Goiânia. Existem cidades do interior, por exemplo, que podem pelo menos fornecer doações. Com certeza vamos resolver os problemas, não digo 100%. (12/06/16)